quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Frederic Nietzsche - Do Amigo

"Tenho sempre junto a mim uma presença importuna", pensa o solitário. "A repetição de um vezes um, acaba por fazer dois, com o decorrer do tempo.
Eu e Mim lançaram-se num diálogo demasiado veemente, Como seria ele suportável, se não houvesse o amigo?"
Para o solitário, o amigo é sempre um terceiro; o terceiro é a valvula que impede a conversação dos dois de se abismar nas profundidades.
Ai! existem sempre demasiados abismos para todos os solitários. É por isso que têm uma tal sede do amigo, e à sua altura.
A nossa fé em outrem revela aquilo que desejariamos poder acreditar de nós próprios. O nosso desejo de um amigo acaba por nos trair.
E muitas vezes a amizade só serve para saltar por cima da inveja. E muitas vezes só atacamos e criamos um inimigo para escondermos que somos vulneráveis.
"Sê, de todos, o menos meu inimgo!"-assim fala o verdadeiro respeito que não ousa solicitar a amizade.
Se quisermos ter um amigo, é preciso também lutar por ele; e para lutar é mister poder ser inimigo.
É preciso honrar no amigo o próprio inimigo.
Podes aproximar-te do teu amigo sem passar para o seu campo?
É preciso ter no amigo o melhor inimigo. É resistindo-lhe que ficarás mais perto do seu coração.
Não queres usar nenhum véu para o teu amigo?
Pensas honrá-lo mostrando-te tal como és? Mas para te agradecer, ele manda-te para o diabo.
O que não dissimula nada de si, excita a nossa indignação; eis porque vos é tão necessário renunciar à nudez. Se fôsseis deuses, decerto, seria dos vossos vestidos que teríeis vergonha.
Nunca te adornarás de mais para o teu amigo; porque deves ser para ele a seta do desejo lançado para o Super-Homem.
Já viste dormir o teu amigo, para o conheceres tal como é? Qual é então o seu rosto habitual do teu amigo? É o teu próprio rosto, visto num espelho tosco e imperfeito.
Já viste dormir o teu amigo? Não tiveste medo vendo-o tal como é? Ó, meu amigo, o Homem é o que deve ser ultrapassado.
É preciso que o amigo se tenha tornado mestre na arte de adivinhar e de se calar; defende-te de querer ver tudo. Que o teu sonho te revele o que faz o teu amigo que vela.
Seja a tua compaixão adivinhadora; sabe primeiro se o teu amigo deseja a tua compaixão. Talvez ame em ti o olhar passível e a contemplação da eternidade.
Que a tua compaixão pelo teu amigo se dissimule sob uma rude casca; parte um dente sobre esta compaixão; ela terá então finura e suavidade.
Serás para o teu amigo ar puro e solidão, e pão e reconforto? Mais de um que não pode quebrar as suas próprias cadeias soube todavia libertar o seu amigo.
És escravo? Não poderás ser amigo. És tirano? Não poderás ter amigos.
Houve durante muito tempo na mulher um escravo e um tirano escondidos. Por isso a mulher ainda não é capaz de amizade; apenas conhece o amor.
Há injustiça no amor da mulher, e cegueira para tudo quanto não ama. E mesmo no amor iluminado da mulher fica sempre, ao lado da luz, a supresa, o relâmpago e a noite.
A mulher ainda nao é capaz de amizade; gatas, eis o que são as mulheres, ou aves; ou, no máximo, vacas.
A mulher ainda não é capaz de amizade. Mas dizei-me vós, homens, qual de entre vós é porventura capaz de amizade?
Ai, que pobreza a vossa! E quão grande a parcimónia das vossas almas! O que dais ao vosso amigo, estou pronto a oferecê-lo ao meu inimigo, e não me sentirei pobre por isso.
A camaradagem existe: possa a amizade nascer!"
Assim falava Zaratrusta.

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